Trilha Inca

 

    Saímos de São Paulo para La Paz em 09/07/04. O aeroporto de La Paz fica num bairro chamado El Alto; e como é alto: o avião praticamente não desce para aterrisar, ele vai subindo, subindo e encaixa na pista.
    Lá em cima você já pode sentir aquele que será seu companheiro durante parte da viagem: soroche, ou mal de altitude. Os sintomas variam de pessoa para pessoa: dor de cabeça, enjôo, mal estar. E o remédio? Mascar coca, tomar chá de coca até não aguentar mais, o que não é difícil, pois o gosto é muito ruim e não dá barato algum!
    O que marca em La Paz é o trânsito (pior do que São Paulo com as obras de Dona Marta) e a pobreza. A cidade é uma grande favela. Passamos a noite alí e no dia seguinte fomos a Puno. Que viagem!!!! Oito horas num ônibus balançando pela Bolívia e depois pelo Perú. O único consolo nessa viagem é ver o Lago Titicaca. Quem, como eu, passou o primário (esse era o nome na época) tendo que decorar nomes de locais nas aulas de geografia, jamais esquece o Titicaca. E realmente é uma emoção ver aquele imenso mar de água doce a 3.800 metros de altura.
    Puno é uma cidade pequena e encantadora, às margens do lago. É muito gostoso passear por ela apesar do soroche e da secura do ar. A partir daí o ar vai se tornando cada vez mais seco e no auge, em Cuzco, o nariz começa a rachar e a sangrar pelo resto da viagem.
    Dia seguinte, fomos navegar. Visitamos as Ilhas Uros, que são ilhas flutuantes, construidas com um vegetal (tipo de junco) que cresce no lago, e a Ilha de Taquile, que os peruanos apregoam ser uma perfeita sociedade socialista, mas na verdade é de uma pobreza que dá dó.
Valeu mesmo o romantismo de estar no Titicaca...
    De Puno fomos a Cuzco passando pelas ruinas de Sillustani. Se você me perguntar se vale a pena percorrer tudo isso para chegar a Cuzco, vou ficar em dúvida. As viagens de ônibus desde La Paz são um tremendo saco, principalmente a nossa, pois quando estávamos a umas duas horas de Cuzco a suspensão do ônibus soltou-se e só chegamos graças ao cinto da minha calça que serviu para amarrar o feixe de molas; por outro lado, ver o Titicaca é emocionante, e a Sílvia foi categórica ao afirmar que tudo o que vimos até aqui vale a pena . Em resumo: se você tiver tempo, faça este roteiro; se não, vá direto a Cuzco.

   Cuzco é emocionante. Suas ruas estreitas, os balcões nas casas, as praças largas, as ruinas sobre as quais estão construidas as casas, sua gente. Aliás, falando em gente, tanto na Bolívia quanto no Perú as pessoas são muito simpáticas. A pobreza é marca constante, todos querem vender seus artesanatos, mas se você disser um não, eles não te assediam, respeitando sua vontade. As roupas típicas que vemos em fotos não são só para turistas; as pessoas realmente se vestem assim, é muito bonito.
    Tendo sido a capital do Império Inca, Cuzco e seus arredores guardam muitas construções da época. O Vale Sagrado com o Rio Urubamba, e Ollantaytambo são especiais. O método construtivo, com paredes sobre camadas de pedregulho, e pedras macho e fêmea, à prova de sismos é impressionante. Os métodos de plantação em terraços com seus canais de irrigação, fontes para banho, esgoto separado da água limpa mostram um pouco do que deve ter sido essa civilização.
    Não deixe de visitar o Museu Inca, que nos disseram ser imperdível (nós não fomos porque naquele dia houve uma greve geral no Perú...).

   Então, vamos à Trilha. Antes de mais nada, só arrisque ir à trilha se você tiver a reserva confirmada. Nós encontramos várias pessoas que estavam em lista de espera e não conseguiram entrar na trilha. E leve o passaporte original; com xerox não se entra. Só podem entrar 500 pessoas por dia na trilha (seja a longa de 4 dias ou as curtas de 1 e 2 dias), incluindo na contagem os guias e carregadores, estes na proporção de 1,5 por turista.

Abrir parenteses: (Beck, eu sei que você iria sem carregadores, mas eu não tenho a sua saúde nem disposição, portanto eu fui só com a mochila de ataque. Para o leitor que não conhece o Beck, vale a pena ler seus livros. Eu sou suspeito, pois foram o Sérgio Beck e o Thomaz Brandolin que fizeram com que eu me apaixonasse por caminhadas.) Fechar parenteses.

   A trilha começa no km 82 da estrada de ferro que liga Cuzco a Machu Picchu, numa altitude de 2.750 metros. Fomos até lá de van e entramos pela portaria onde nos foi exigido o passaporte, cujo número foi comparado com uma lista que eles têm para as entradas daquele dia. A burocracia é simples e rápida. A partir daí começa o passeio. Fomos margeando o Rio Urubamba (que nesse trecho também é conhecido por Vilcanota) e a estrada de ferro até quase a hora do almoço. Durante esse percurso há vários moradores que vendem água e refrigerante. Alias, até o fim da manhã do segundo dia encontra-se esse pessoal, cujos preços vão subindo à medida que se caminha. A caminhada nesse dia é realmente um passeio. Lá pelo fim da manhã, a estrada de ferro vai para a direita, seguindo o rio, e nós para a esquerda, descendo até uma série de ruinas (2.650 metros). Parada para almoço e toca adiante. Aí começamos a subir em direção ao acampamento. Deveríamos acampar em Wayllabamba, a 3.000 metros de altitude, mas ao chegarmos lá o camping estava lotado. Nosso guia sugeriu que subissemos um pouco mais, inclusive para ganharmos um pouco de terreno do dia seguinte, e lá pelas 18 horas chegamos a Tres Piedras onde acampamos. Uma delícia; só nós no camping. O banheiro era um buraco de 2 metros de diâmetro "lá em baixo", e como já estava escuro e ninguém queria cair no tal buraco, inauguramos um banheiro "alí em cima no matinho" mesmo.
    As refeições na trilha foram algo fora de série. Para quem está acostumado a comer lanche de trilha, parecia que estávamos num hotel 5 estrelas. Nosso grupo compunha-se de 6 turistas, 1 guia, 8 carregadores e 1 carregador-cozinheiro. Pela manhã tínhamos café, leite, chocolate quente, chá e o sempre presente e enjoativo chá de coca; cereais, pão, margarina, requeijão, panquecas com geléia ou doce de leite. O almoço e o jantar tinham sempre uma sopa acompanhada de torradinhas de alho, prato principal e sobremesa, normalmente um doce feito lá mesmo. E, pasmem, lanche da tarde quando chegávamos cedo ao acampamento, composto de café, leite, chocolate quente, chá, pipoca e pasteizinhos.......
   O segundo dia foi O SEGUNDO DIA!!! Saímos de Tres Piedras e toca a subir. E que subida. Lá em cima víamos o passo Warmiwañusca a 4.215 metros de altura, por onde tínhamos que passar, e parecia que nunca chegávamos mais perto. Estou falando por mim, pois Alan e Nunu foram embora com um pé nas costas, só superados por um grupo muito louco de ingleses que subiam cantando La Bamba... Aí pelas tantas eu empaquei a 200 metros (verticais) do passo, com a Sílvia dando apoio moral, mas só moral não adiantava. Então a salvação veio montanha abaixo. Alan desceu, pegou minha mochila, subiu e deixou-a lá, desceu e pegou a da Sílvia e tornou a subir. Isso é que é filho, só faltou me empurrar montanha acima!!! Aí nós fomos, bem devagar, mas fomos. E chegamos lá em cima ao meio dia, conforme combinado. A vista de lá é impressionante; por todos os lados montanhas nevadas. Começou a descida. Escadas de pedra. E haja joelho. Depois do almoço continuamos a descida até Pacaymayu onde acampamos.
    O clima é tão seco que você quase não sua e a falta de banho não é tão sentida. Mas com o que eles cobram para se entrar no parque, bem que os banheiros poderiam ser melhores. Os guarda-parques estão lá só para te obrigar a usar os "banheiros" oficiais, mas qualquer excursionista mais higiênico usa o mato mesmo, apesar de ser proibido. A Sílvia aconselha a fazer como gatos: cavar buracos e tapá-los.
    Naquela noite o tempo fechou e choveu. Choveu muito, com trovões e relâmpagos e o terceiro dia amanheceu chovendo. Café da manhã tomado, toca a subir para Runqurakay. E foi aí que a Nunu começou a passar mal. Enjôo, frio, soroche. Todos iam dando casacos a ela mas não adiantava. Ela continuava com frio e a chuva não dava trégua. E não podíamos parar. Por fim, lá pelas 10 horas a chuva parou e por volta das 11 horas ouvimos Nunu cantando pela trilha. Em tempo, Nunu não consegue ficar quieta e quando não tem ninguém perto para ouví-la falar, ela canta. Ela cantou a trilha toda, e naquele momento seu canto foi música para nossos ouvidos. Ela tinha ficado boa. Então pudemos apreciar o visual. Estávamos deixando os picos nevados e começando a penetrar na floresta amazônica peruana. Enormes árvores tropicais começaram a aparecer. Um sonho.
    Esta noite acampamos perto de Puyupatamarca, a 3.640 metros de altura, num cume "baixinho" cercado pela floresta e com os picos nevados dos Andes ao redor. A temperatura desceu abaixo de zero, o céu limpou, e as estrêlas apareceram com toda a sua lindeza. Que céu mais lindo. Algo parecido eu só vi na Chapada Diamantina na casa do seu Mansur. Estonteante.
    Quarto dia e toca a passear pela floresta. Depois de passar por Winaywayna pega-se uma subida e chega-se à Porta do Sol. A emoção ao se olhar lá para baixo e ver Machu Picchu é indescritível. Realmente não há palavras. Você senta e chora. Se você não quiser fazer a trilha longa, faça a curta de um ou dois dias, mas faça, para passar pela Porta do Sol.
    Machu Picchu é muito linda. A única cidade não destruida pelos espanhóis, que se conserva tal qual era na época dos Incas.

    Bem, essa foi a aventura. Uma aventura de emoções. Emoção de ver aquelas construções de 500, 600 anos de idade, e a emoção não menor de estar no centro da Cordilheira dos Andes .....

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