Cordilheira Branca
Trilha Santa Cruz - Llanganuco
Huaraz é uma cidade feia. Muito feia. Dizem que antes do terremoto de
31/05/1970, que destruiu a cidade, ela era bonita. Porém agora... Mas não
tem jeito, se você quiser passear pelas cordilheiras Branca, Negra, ou
Huayhuash, tem que vir para cá. A cidade fica no Callejón de
Huaylas, ou seja, no vale entre as cordilheiras. Até que existem
lugares charmosos em Huaraz, que eu descrevo mais adiante.
Cheguei aqui em 14/06/2008, após 8 horas de viagem de ônibus, vindo de
Lima. Eu viria de avião, mas meu voo foi cancelado - estão vendo, não é
só aqui no Brasil, não. Até que valeu a pena, pois foi no ônibus que
conheci meu companheiro de trilha. É que eu queria muito conhecer a
Cordilheira Branca e, fuçando toda a internet acabei descobrindo uma
operadora, Peruvian Andes (http://www.peruvianandes.com), que me
pareceu boa. Na verdade eles são muito bons, honestos e profissionais.
Conversando com a Anne, ela me disse que tinha um americano que faria a
trilha que eu queria fazer, em junho. "Você quer ir com ele? Ele tem a
sua idade e vocês dividem o preço". Dito e feito. Greg e eu trocamos
alguns e-mails e fomos. Aqui vale um parêntese: o Greg é alpinista e
eu, andarilho. Mas para equilibrar as coisas, aluguei um cavalo para as
partes mais difíceis.
O pessoal da Peruvian nos
recomendou dois dias de aclimatação, que foram muito bem vindos. No
primeiro dia fomos ao Monte Macashca. Huaraz fica a 3.100m de altitude.
Tomamos um carro que nos levou a 3.600m e começamos a caminhar para
cima. Nosso destino era o topo do monte, a 4.200m. A cada passo
eu morria um pouco e o Greg tossia, cuspia e batia no peito
pedindo ao coração para continuar batendo. O vento batia nos picos
gelados lá longe, roubava deles todo seu frio e vinha despejar aquele
ar gelado sobre nós. E dá-lhe folha de coca. Mascamos tanto que uma
hora depois não aguentávamos mais o gosto. Depois de 2 horas e meia de
sofrimento chegamos lá
em cima. E que vista! Sentamos para desfrutar a vista e
curtir o almoço. Depois toca a descer, por mais 2 horas e meia, num
piso coberto de pedras roladas de rio, ou seja, um passo, um
quase-tombo.
E haja joelhos. Eli, o guia, muito simpático, já
imaginando nós dois na trilha, propôs que no dia seguinte
fizéssemos uma aclimataçao mais leve do que a previamente
combinada. Subimos de
carro a Cordilheira Negra até 4.200m e começamos a descer a pé para
Huaraz. Apesar da altitude, foi bem melhor que o dia anterior, pois
como dizem por aí, para baixo todo santo ajuda. Após umas quatro
horas de caminhada chegamos a um pueblo e o Greg quis
comemorar tomando uma cerveja. Paramos num bar e lá veio a Cristal.
"Esse povo é descendente dos ingleses???? A cerveja está quente!". Esse
foi o primeiro choque cultural entre o gringo e o Peru. À medida que a
gente descia, senti meu pé esquerdo doer como se uma pedra houvesse
entrado na bota. E que desilusão ao tirar as meias: uma enorme bolha
d'água na sola do calcanhar. Minha trilha está perdida, pensei, mas o
Greg disse que eu não ia fugir da raia, não. Chegando ao hotel, em
conversa com uns suiços, eles me deram um adesivo chamado "segunda
pele". Apliquei à noite, calcei as meias e a bota no dia seguinte e não
senti desconforto algum durante toda a caminhada. Milagre suiço.
O primeiro dia de trilha começou juntando a turma e a tralha. A turma
era composta pelo Eli (guia), Marco (cozinheiro), Luci (ajudante), Toni
(guia dos burros), 4 burros, meu cavalo, Greg e eu. Tomamos um carro
(só os humanos) e fomos para Cashapampa onde a trilha começa. No
caminho passamos por Yungay, cidade totalmente destruida no terremoto
de 1970, hoje transformada em um campo santo. Paramos em Caraz para
comprinhas de última hora, onde o Greg insistiu em nos pagar, a mim e
ao Eli, uma vitamina feita na rua. Como o Eli tomou, eu acompanhei no
brinde à caminhada. Enfim, atrasados, chegamos a Cashapampa (2.900m)
lá pelas 11 da manhã. Mochila nas costas, vamos andar. Este
primeiro dia é duro. Fomos margeando o Rio Santa Cruz que vem lá do
alto das montanhas por uma garganta extremamente profunda. Quando
entramos na garganta o Eli disse que à tarde essas paredes enormes
parecerão pequenos montinhos de terra. Aí o Greg tirou da mochila duas
garrafinhas de uma "bomba" qualquer e me deu uma. "Tome, que vai
ajudar." E ajudou mesmo. Eu nunca havia enfrentado uma subida dessas
por tanto tempo. Lembrei do segundo dia da Trilha Inca, em que eu sofri
tanto, e pensei comigo que aquele dia havia sido uma brincadeira. Por
fim, depois de três horas, a subida terminou e desembocamos num lindo
vale florido. Mais duas horas de caminhada leve e chegamos ao primeiro
acampamento em Llamacorral (3.760m).
O tempo estava deslumbrante, sem uma nuvem no céu. Aliás, tivemos muita
sorte nesta caminhada, pois o sol nos brindou a cada dia com sua
presença, e a temperatura estava agradabilíssima. Caminhamos o tempo
todo só de camiseta, mas quando o sol se escondia atrás de alguma
montanha, a temperatura caía tremendamente. E foi o que aconteceu à
medida que a noite baixava. Comecei a colocar casacos e pensei comigo:
"Estou ferrado. O frio vai ser de amargar". Comentando isso com o Greg,
ele disse que tinha uma camiseta sobrando e podia me emprestar.
Camiseta? Sim, mas feita de um material e de um modo que me salvou de
congelar. Apenas com ela e com o saco de dormir eu me senti aquecido. Bendita tecnologia moderna.
O segundo dia foi de festa. Saímos lá pelas 8 horas e fomos passear. A
trilha se tornou quase plana, o vale se alargou, havia flores pelo
caminho. Passamos por dois lagos, o Ichiccocha (pouca água) e o
Jatuncocha (muita água). Tivemos uma visão grandiosa do glaciar que os
alimenta, e chegamos, lá pelo meio dia a uma encruzilhada. Se
tomássemos a direita, seguiríamos para o acampamento; a esquerda nos
levaria para o campo base do Alpamayo. Greg e eu não hesitamos: vamos
ao Alpamayo. A subida para o campo base não é fácil. Você sobe uma
encosta enorme em zigue-zague. A trilha é estreita, de um lado a
encosta, do outro o abismo. Começamos a subida e logo eu me perguntei:
para que é que eu tinha trazido um cavalo? E fui montado. No princípio
dá um pouco de medo olhar do alto do cavalo para baixo, mas depois que
você se convence que ele sabe onde pisa, você relaxa e curte a
paisagem. E valeu a pena. Sentamos para almoçar aos pés de uma das mais
bonitas montanhas já vistas. Depois do almoço, toca para o segundo
acampamento, aos pés do Taulliraju, a 4.250m de altitude. À medida que
o sol se punha, começou a esfriar. Muito. Lá pelas 17 horas, entrei na
barraca, pulei dentro do saco de dormir e fiquei lendo alí no quentinho
esperando pelo jantar. Às 19 horas Eli nos chamou para jantar, e sair
da barraca foi um sacrifício. Estava um frio de lascar. E o céu
totalmente estrelado... Jantamos e corremos para nos abrigar, cada qual
no seu casulo.
O terceiro dia foi punk. Deixamos
o acampamento às 8 horas e fomos nos aproximando do Taulliraju.
Precisávamos subir por um lado dele e atingir Punta Union, um passo a
4.750m. À medida que nos aproximamos, a trilha começou a subir. Greg
tinha um litro de chá de coca. Aquela "bomba" dele do primeiro dia não
funciona para a falta de fôlego. Chegou uma hora em que eu montei. Mas
a emoção continuou. Agora já não era cansaço e falta de fôlego, mas eu
me senti numa montanha russa, pois a trilha é de terra com pedras
enormes no caminho e o cavalo derrapava e sacudia. Até o momento em que
ele escorregou numa pedra lisa e caiu. E eu pulei de cima dele, para
não ficar com a perna em baixo do bichinho, com uma agilidade que me
espantou. Ainda bem que ambos caímos do lado da encosta... A partir daí
fui a pé até Punta Union. A falta de fôlego é muito estranha: você puxa
ar para os pulmões, mas sente que não vai energia para o corpo. E as
pernas se recusam a trabalhar... Luci e eu chegamos lá em cima e o que
se descortina é impressionante. Eu já havia pensado, anos atrás, em ir
ao Everest, depois ao Aconcágua. Agora, Punta Union me basta. O cenário
é indescritível. As montanhas ao redor, ali, logo ali, te maravilham. É
como estar no tôpo do mundo. Será que é esta a razão de eu inventar
fazer essas coisas malucas? E lá, bem longe está o Lago Jatuncocha,
aquele por onde passamos ontem. Bom, descansados, lanche tomado, vamos
em frente. Se a subida foi difícil, a descida foi punk. Fomos descendo
atrás do Taulliraju, indo para o vale lá em baixo. O dia foi longo,
muito longo. Só chegamos ao acampamento no Valle Paria (3.900m) após 9
horas de caminhada estressante. E lá, simplesmente desabamos na
barraca. No jantar brindamos a passagem por Punta Union com pisco sour
e fomos dormir. Ao raiar do quarto dia, tendo sido acordado pelo rei
Sol, abri minha barraca e esta foi a vista que eu tive. Não sei o nome
dessa montanha, mas o que importa um nome com uma vista dessas?
Agora vou abrir um parêntese para mostrar que o que tem que ser, será.
Você já achou uma agulha num palheiro? O Greg trouxe uma máquina
fotográfica Panasonic, com duas baterias e dois chips. Na véspera da
trilha ele carregou uma bateria, e deixou a outra carregando à noite.
De manhã, no corre-corre, esqueceu a bateria plugada na tomada. Ao
chegarmos a Cachapampa ele percebeu que faltava uma bateria e pediu ao
motorista que nos levou para guardar a que ficou plugada para ele.
E assim fomos: "Dois chips e uma bateria, tem cabimento?". Durante a
subida a Punta Union, reparei que Luci se abaixou e pegou algo no chão.
Chegando ao acampamento ela perguntou ao Greg se: "esta bateria serve
na sua máquina?". Bem, era uma bateria Panasonic, do exato modelo
da dele, e carregada... Fecha parêntese.
O quarto
dia começou fácil. Passeamos por um vale lindo e florido onde eu
aproveitei para galopar um pouco, e fomos passando por vários pueblos
cujas crianças nos assaltavam em busca de presentes. Desse modo,
passeando, chegamos à subida para Vaqueria. E que subida. Agora já não
era fôlego que faltava; eram pernas.
E assim, depois de 4 dias e 47 quilômetros sem tomar banho, sem praticamente lavar as
mãos ou escovar dentes, sem trocar de roupa nem para dormir, apenas
andando pelos lugares mais lindos do mundo, vendo coisas que os olhos
veem, mas só a alma compreende, chorando de emoção, indo para a cama,
depois do jantar, às 19 horas, pois a gente não aguenta o frio, para
acordar no dia seguinte às 6 horas com o nascer do sol, terminamos nossa linda caminhada.
O próximo dia foi para passear por Huaraz... Eu disse que existem
lugares charmosos. Se você estiver no meio da tarde querendo encontrar
gente nova, ou tomar um café, ou simplesmente ler um livro, vá ao Café
Andino. Pegue um livro das prateleiras, sente-se num dos sofás e curta
seu tempo. E se você gostou do livro que começou a ler, simplesmente
deixe na prateleira aquele seu já lido e leve este embora... Para
jantar, vá ao Hotel San Sebastian, toque a campainha do portão fechado
e diga que vai ao restaurante. É lindo, com comida muito boa. E para
curtir os restaurantes onde vai toda a juventude de trekkers, vá ao
Parque Ginebra e escolha um dos restaurantes de lá.
Dia seguinte o Greg foi embora e eu fui até Chavin de Huantar visitar
as ruinas de um templo da era Chavin (800 a 200 a.c.), muito
interessante, mas cansativo pois são 3 horas de carro para ir e outras
3 para voltar.
O outro dia amanheceu encoberto. O
céu estava plúmbeo. Não se via a cordilheira. Chovia nas montanhas. Eu
fiquei imaginando o pessoal que saiu na véspera para uma caminhada ou
escalada, nesse tempo fechado, e dei graças por ter tido tanta sorte.
Saí para uma caminhada de um dia ao Glaciar Ranralpalca. Você vai de
carro pela encosta de uma montanha até um vale, e começa a andar pelo
vale em direção ao glaciar, num caminho lindo, florido até chegar a um
monte de onde vem o rio que te acompanha. Sobe esse monte e lá em cima
está o lago com o glaciar adiante. Chegamos apenas até o lago, pois o
guia não quis arriscar irmos até o glaciar devido ao mau tempo. Mas
valeu cada passo dessa mini caminhada de 4 horas.
Para ir embora de Huaraz, fui de avião. Um avião de 19 lugares, sem
banheiro. À medida que subíamos, a aeromoça (que não veio conosco
porque não é trouxa), nos dava uma caixinha com um sanduiche, um doce e
um suco. Eu não consegui ficar ereto no avião. Minha cabeça batia no
teto, e olhe que eu não sou assim tão alto... Quando as hélices
começaram a girar o barulho tornou-se ensurdecedor. Os passageiros que
já conheciam a viagem levaram protetores auditivos. O piloto veio até a
cabine e nos informou que ia voar a 7.000 metros de altura, e assim
fomos. Um voo de 50 minutos, ensurdecedor, mas passando por cima de
toda a maravilhosa cordilheira que eu acabara de visitar.
Que saudade que dá!